Tempo estimado de leitura: 10 minutos
Uma mudança discreta em uma portaria do Ministério do Trabalho e Emprego pode se tornar uma das ferramentas mais poderosas nas mãos dos trabalhadores brasileiros nos próximos meses. A Portaria MTE nº 2.021, publicada no dia 3 de dezembro de 2025, não apenas regulamenta a periculosidade para quem trabalha de moto, mas traz uma novidade que pode ser revolucionária: agora, as empresas são obrigadas a disponibilizar os laudos de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores, sindicatos e à Inspeção do Trabalho.
Parece técnico demais? Então vamos traduzir: aquele documento que a empresa faz (ou deveria fazer) para dizer se o seu trabalho é perigoso ou insalubre, e que determina se você tem direito a receber adicional no salário, agora não pode mais ficar escondido na gaveta do RH. Você tem o direito de ver esse laudo, entender o que está escrito nele e, se achar que está errado, questionar e até acionar a Justiça.
O que mudou exatamente
A Portaria MTE nº 2.021/2025 aprovou o novo Anexo V da Norma Regulamentadora nº 16 (NR-16), que trata especificamente de atividades perigosas realizadas com motocicletas. Mas não foi só isso. A portaria também alterou duas normas fundamentais da segurança do trabalho no Brasil: a NR-15, que trata de atividades insalubres, e a própria NR-16, sobre periculosidade.
As alterações incluíram dois novos itens nas normas. O item 15.4.1.3 da NR-15 agora determina que o laudo caracterizador da insalubridade deve estar disponível aos trabalhadores, sindicatos das categorias profissionais e à inspeção do trabalho. O item 16.3.1 da NR-16 traz exatamente a mesma exigência para o laudo de periculosidade.
Parece pouco? É muito. Até agora, não havia obrigação legal expressa de que esses laudos fossem compartilhados com os trabalhadores. Muitas empresas os tratavam como documentos internos, de acesso restrito ao departamento de recursos humanos e aos profissionais de segurança do trabalho. O trabalhador muitas vezes nem sabia que esse documento existia, quanto mais o que estava escrito nele.
Por que isso é importante
Os laudos técnicos de insalubridade e periculosidade são os documentos que determinam se um trabalhador tem direito ou não aos adicionais previstos na Consolidação das Leis do Trabalho. O adicional de insalubridade varia de 10% a 40% do salário mínimo, dependendo do grau de exposição a agentes nocivos à saúde. Já o adicional de periculosidade corresponde a 30% do salário base para quem trabalha exposto a riscos de acidentes graves.
Na prática, esses laudos são elaborados por médicos do trabalho ou engenheiros de segurança do trabalho contratados pela própria empresa. Eles avaliam as condições de trabalho, identificam os riscos presentes e concluem se há ou não direito ao pagamento dos adicionais. O problema é que, sem acesso ao documento, o trabalhador fica impossibilitado de verificar se a avaliação foi feita corretamente, se todos os riscos foram considerados ou se as conclusões fazem sentido.
Havia casos em que trabalhadores claramente expostos a agentes insalubres ou situações perigosas não recebiam os adicionais porque o laudo da empresa concluía pela inexistência de insalubridade ou periculosidade. Sem ter como consultar o documento, o trabalhador dependia de ingressar com ação judicial e solicitar nova perícia para tentar comprovar seu direito. Agora, com acesso ao laudo, é possível identificar eventuais irregularidades antes mesmo de recorrer à Justiça.
O caso dos motociclistas
A portaria aprovada trata especificamente da periculosidade para quem trabalha de moto, uma categoria que há anos reivindica o reconhecimento dos riscos inerentes à atividade. O novo Anexo V da NR-16 estabelece que as atividades laborais com utilização de motocicleta no deslocamento de trabalhador em vias abertas à circulação pública são consideradas perigosas.
Isso significa que empregados CLT tais como motoboys, motofretistas e todos os demais profissionais que usam moto para trabalhar em vias públicas têm direito ao adicional de periculosidade de 30% sobre o salário base. A norma deixa clara a presunção de periculosidade para essas atividades.
Existem algumas exceções. Não são consideradas perigosas as situações em que o trabalhador usa a moto exclusivamente no trajeto casa-trabalho, quando circula apenas em áreas privadas ou vias internas da empresa, quando utiliza a moto em estradas rurais de acesso restrito ao público ou quando o uso é eventual ou de tempo extremamente reduzido.
Mas aqui é que entra a importância do acesso ao laudo. A empresa é obrigada a elaborar um documento técnico caracterizando ou descaracterizando a periculosidade. Se você trabalha de moto fazendo entregas o dia todo em vias públicas, mas a empresa alega que seu caso se enquadra em alguma exceção e não paga o adicional, agora você pode pedir para ver o laudo e verificar a justificativa.
Como funciona na prática
Com a nova regra, o trabalhador pode solicitar formalmente à empresa uma cópia do laudo de insalubridade ou periculosidade referente à sua função. A empresa não pode negar esse acesso. Se negar, estará descumprindo a norma regulamentadora e pode ser autuada pela Inspeção do Trabalho.
Os sindicatos também ganham um instrumento poderoso. Agora podem solicitar os laudos das empresas e verificar se os direitos dos trabalhadores estão sendo respeitados. Se identificarem irregularidades, podem questionar as empresas, orientar os trabalhadores sobre seus direitos e até propor ações coletivas quando necessário.
A Inspeção do Trabalho, por sua vez, passa a ter acesso facilitado a esses documentos durante as fiscalizações, o que torna mais ágil a verificação do cumprimento das normas de segurança e saúde no trabalho.
O impacto potencial é enorme
Especialistas em direito do trabalho avaliam que essa mudança pode gerar um aumento significativo no número de ações trabalhistas relacionadas a adicionais de insalubridade e periculosidade. Isso porque muitos trabalhadores que não sabiam ter direito aos adicionais, ou que desconfiavam que deveriam receber mas não tinham como comprovar, agora terão acesso direto às informações.
Para as empresas, a medida exige mais rigor e transparência na elaboração dos laudos. Documentos mal fundamentados, incompletos ou que ignoram riscos evidentes ficarão expostos ao escrutínio dos trabalhadores e seus representantes. Empresas que vinham sonegando o pagamento de adicionais com base em laudos questionáveis podem enfrentar problemas.
Por outro lado, a medida também pode beneficiar empresas que fazem as coisas corretamente. Laudos bem elaborados, que demonstram claramente as condições de trabalho e justificam adequadamente suas conclusões, dão mais segurança jurídica tanto para a empresa quanto para o trabalhador.
Histórico da norma sobre motocicletas
O reconhecimento da periculosidade para quem trabalha de moto não é novidade. A Lei nº 12.997/2014 já havia incluído essa atividade como perigosa na CLT. Em 2014, o Ministério do Trabalho publicou a Portaria MTE nº 1.565, criando o primeiro Anexo V da NR-16 sobre o tema.
No entanto, anos depois, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região anulou aquela portaria, determinando que o processo normativo fosse refeito porque alguns procedimentos obrigatórios não foram cumpridos adequadamente. Desde então, a categoria ficou em uma espécie de limbo jurídico, com muitas empresas deixando de pagar o adicional sob o argumento de que não havia norma regulamentadora válida.
A nova portaria, publicada em dezembro de 2025, encerra esse período de incerteza. O texto foi elaborado seguindo rigorosamente todos os trâmites previstos, incluindo análise técnica, consulta pública e debates na Comissão Tripartite Paritária Permanente, que reúne representantes do governo, empregadores e trabalhadores.
Quando entra em vigor
A Portaria MTE nº 2.021/2025 estabelece um prazo de 120 dias para entrar em vigor, contados a partir de sua publicação em 3 de dezembro de 2025. Isso significa que as novas regras passam a valer no início de abril de 2026.
Esse prazo foi estabelecido para que as empresas tenham tempo de se adequar. É preciso revisar os laudos existentes, elaborar novos laudos para atividades que não tinham avaliação, ajustar a folha de pagamento para incluir os adicionais devidos e criar procedimentos para disponibilizar os documentos aos trabalhadores.
Para os trabalhadores, é importante usar esse período de transição para se informar sobre os direitos, conversar com o sindicato da categoria e, a partir de abril, solicitar formalmente acesso aos laudos referentes às suas funções.
O que fazer se você trabalha de moto
Se você é motoboy, motofretista ou exerce qualquer outra atividade que envolva usar moto em vias públicas durante o trabalho, fique atento. A partir de abril de 2026, você tem direito garantido a:
- Receber adicional de periculosidade de 30% sobre seu salário base, desde que use a moto em vias abertas ao trânsito público durante a jornada de trabalho.
- Ter acesso ao laudo técnico que caracteriza ou descaracteriza a periculosidade da sua atividade, elaborado por médico do trabalho ou engenheiro de segurança.
- Questionar o laudo caso ele conclua pela inexistência de periculosidade em situação que você entende ser perigosa.
- Buscar o sindicato da sua categoria para orientação e, se necessário, ingressar com ação trabalhista para garantir o pagamento do adicional.
Importante: o adicional de periculosidade não é pago para quem usa a moto apenas no trajeto casa-trabalho. Ele é devido quando a moto é instrumento de trabalho, usada para fazer entregas, transportar pessoas ou documentos, atender clientes ou qualquer outra atividade profissional em vias públicas.
Uma vitória da transparência
Mais do que regulamentar a periculosidade para motociclistas, a Portaria MTE nº 2.021/2025 representa uma vitória da transparência nas relações de trabalho. A obrigação de disponibilizar os laudos de insalubridade e periculosidade quebra uma assimetria de informação que há décadas favorecia empregadores em detrimento dos trabalhadores.
Agora, o trabalhador deixa de ser um mero espectador das decisões sobre sua própria saúde e segurança. Ele passa a ter acesso direto às informações técnicas que determinam se seu ambiente de trabalho oferece riscos e se ele tem direito a compensações financeiras por isso.
Essa mudança se alinha com um movimento mais amplo de valorização da transparência e do controle social sobre as condições de trabalho no Brasil. É um passo importante para reduzir a informalidade, combater a sonegação de direitos e garantir que as normas de segurança e saúde do trabalho sejam efetivamente cumpridas.
A partir de abril de 2026, nenhum trabalhador precisará aceitar passivamente a palavra da empresa sobre se sua atividade é ou não perigosa ou insalubre. Ele poderá ver o laudo, entender os critérios utilizados e, se necessário, questionar. É uma mudança simples na letra da lei, mas que pode ter impactos profundos na realidade de milhões de trabalhadores brasileiros.
Quer receber conteúdos sempre em primeira mão? Entre agora no nosso canal do Whatsapp, clicando aqui.
Jornalista; Assessor de Comunicação; Atuando também na produção de conteúdos sobre o mundo trabalhista e a justiça do trabalho no Brasil para o portal Direito do Empregado.
Comentários estão fechados.